'Não escrevemos sobre futebol no Brasil e isso é um erro', diz Adílson Batista

  • 07/11/2019

A vitória do Ceará contra o Fluminense, na última semana, pelo Campeonato Brasileiro, foi a 100.ª na carreira de treinador de Adílson Batista e revela uma faceta audaciosa de seu trabalho à beira do campo, confirmada na boa atuação do time na rodada seguinte, no revés diante do Palmeiras. Hoje com 51 anos, natural de Adrianópolis (PR), o ex-zagueiro com forte perfil de liderança, revelado pelo Athletico Paranaense e com passagens por Grêmio, Cruzeiro, Santos, São Paulo e Corinthians, entre outros clubes, passou a atuar na área técnica apostando na ofensividade de seus times.

Em entrevista ao Estado, porém, o ex-defensor revela que tem buscado uma maior versatilidade nos últimos tempos, passando a acreditar que são as peças disponíveis a indicar a estratégia de jogo, e não o contrário. Se dizendo já bem adaptado ao Ceará, Adílson dá palpite sobre a final da Copa Libertadores deste ano, entre Flamengo e River Plate, e lamenta a falta de troca de conhecimento entre treinadores no Brasil.

Como está a adaptação ao futebol cearense? Descobriu alguma peculiaridade local inesperada em relação à rotina de trabalho?

Está tranquilo, estrutura boa, boas condições de trabalho, pessoal empenhado, torcida apaixonada... Lugar muito legal para se trabalhar, mas ainda não tive tempo para descobrir (algo diferente), pois é trabalho quarta e domingo, quarta e domingo, e com viagens. É do hotel para o Centro de Treinamento. Enfim, não tem dado tempo para observar quase nada.

Você teve passagens anteriores já há muito tempo por clubes do Nordeste. O que acha que evoluiu mais na região, em termos de estrutura e concepção de futebol, de sua primeira passagem, pelo América-RN, em 2002, para cá?

Tenho visto muito mais suporte e condições de trabalho. O Ceará tem uma estrutura boa, com departamentos de fisiologia e físico. Eles têm evoluído muito neste sentido e é algo importante. Quando a gente vem a São Paulo e Rio para treinar em locais de estrutura, como é o CT do Palmeiras, isso desperta a atenção dos dirigentes de lá para a importância de manter algo semelhante em suas sedes. E, para alcançar isso, é importante a permanência (na Série A), pois a arrecadação melhora e ajuda muito nessa evolução.

Você passou um bom tempo sem pegar nenhum trabalho, entre 2015 e 2018...

Na verdade, surgiram algumas propostas, mas não achei interessante. Quando vieram times da Série A, acabei pegando (esteve no América-MG, no ano passado).

E o que te fez achar interessante a proposta do Ceará?

Eu já vinha observando o grupo de jogadores, vi que tinha condições de permanecer (na elite do futebol brasileiro) e fez bons jogos. Conheço o Enderson (Moreira, ex-técnico do clube cearense), sou amigo do Luís Fernando (Flores, ex-auxiliar técnico) e conversei com eles antes de acertar. Me passaram que era um grupo sério, que trabalha bem, que tinha totais condições de reagir e era um clube com torcida calorosa e apaixonada. Por isso acertei.

Nesse tempo que passou sem trabalhar em clubes, o que você esteve fazendo?

Sempre estudando, vendo jogos e trocando ideias com professores que respeito. Adoro ver a Premier League (Campeonato Inglês), Liga dos Campeões, o Barcelona, o futebol holandês. Fiz também viagens, estive na Argentina, Chile e Paraguai. Participei de cursos da CBF, pela Licença PRO, vendo alguns sites sobre futebol que acho interessantes, além de ler livros que acho que podem contribuir com nosso conhecimento. Sempre que vou à Argentina trago duas, três mochilas de livros com material sobre futebol. Aqui, a gente não escreve e acho isso um erro nosso. Principalmente por termos uma história tão bonita no futebol, precisávamos deixar isso escrito, passar para os mais jovens essa experiência. Teve (Rubens) Minelli, Ênio Andrade, Telê (Santana), tanta gente importante... O Ricardo Drubscky é um que escreve muito, com muito conteúdo interessante.

Por que você acha que os técnicos não escrevem no Brasil?

Não sei, porque a gente vê casos como o de Portugal, onde há uma linha de trabalho boa, todo ano sai material. O próprio Jorge Jesus, daqui a pouco deve sair um livro dele, do que ele tem feito aqui. Então, acho que a gente precisava escrever. Há tantos personagens capacitados, que deveriam deixar algo escrito, temos uma história rica. Acho uma pena.

No que acha que evoluiu mais como treinador, do início da carreira para cá?

Acho que tenho melhorado na gestão de pessoas, em ter um pouquinho mais de paciência. Tento rever algumas coisas que fazia, em termos de treinamento, mas o principal, para mim, é a gestão. Costumava ser muito imediatista, exigente. E acho que temos que ter um pouco mais de calma para lidar com essa nova geração, procurar entendê-la.

Seu melhor momento foi mesmo aquele com o Cruzeiro, especialmente em 2009?

Na verdade, fiz um ótimo trabalho no Mogi Mirim (2001), subi o time (para a Série B do Brasileiro), fui vice-campeão e poderia ter sido campeão. Também fui bem pelo América de Natal (em 2002), pelo Figueirense (2005) e antes já havia feito bom trabalho no Paysandu (2004) e no Avaí (2002/2003). Tirei o Grêmio do rebaixamento (2003)... Enfim, fiz outros bons trabalhos, mas é que o do Cruzeiro marcou, pois fui à final da Libertadores, passei quase três anos lá (de 2008 a 2010), quase sempre com o time entre os quatro primeiros do Brasileiro. Só que fiz outros times jogarem bola. Sou de uma linha que gosta que o time jogue futebol. Mas às vezes você tem que adaptar, pegar ensinamentos, como foi lá no América-MG, onde tive que jogar com um time reativo. No Joinville, aprendi a melhorar a marcação e o contra-ataque. É preciso ver o clube onde você está, os jogadores que tem, e acho que isso também enriquece o treinador, dá um amadurecimento maior para ter tranquilidade na hora de tomar decisões.

E o que você avalia que faltou ao Cruzeiro naquela final da Libertadores com o Estudiantes em 2009?

O time era muito bom, tinha muita confiança e não merecia ter perdido aquela competição. Foi nos detalhes. Colocamos duas bolas na trave... Eu lamento mais pelos atletas.

Acha que, de alguma forma, um jogo como esses poderia servir como lição para um time como o Flamengo, que vai disputar uma final da mesma competição contra um grande time argentino?

Não é lição, o futebol é assim mesmo. É uma decisão, e decisão é nos detalhes. O Flamengo está com um grande time, mas o River Plate pode ganhar. O (Marcelo) Gallardo está fazendo um ótimo trabalho e não dá para dizer que o Flamengo é favorito, não.

É sabido que houve alguma resistência da torcida do Ceará em relação a improvisações que você tem feito no time. Chegaram até a chamar de "Professor Pardal" em alguns momentos. Considera que essa relação está um pouco melhor, agora que os resultados vêm acontecendo?

Cheguei a um clube que não vencia havia 10 jogos, não fazia gols, tinha questionamentos em relação ao centroavante e onde faltava um pouco de confiança. Nos primeiros jogos, tentei mudar esse panorama. Acho que temos de olhar para o outro lado. Jogadores como o (lateral-esquerdo) João Lucas e o (meia Felipe) Baixola cresceram, a gente começou a fazer gol, mudei o posicionamento e passamos a fazer duas linhas de quatro, indo bem contra times que jogam em ritmo intenso, como Santos e Bahia. No jogo contra o Fluminense, fizemos um grande primeiro tempo, mas o torcedor quer ver o time mais adiantado, mais ofensivo. Só que o atleta tem que te dar isso, e hoje temos que mudar um pouco essa cultura de que o atacante não precisa marcar. Você vê por aí o Robben marcando, Ribéry, Mbappé, Salah, Sané... Todo mundo volta. Por que os nossos não podem voltar? O torcedor às vezes pensa assim, e eu penso pelo coletivo. Há coisas que não faço para agradar torcedor, faço para melhorar o coletivo.

Enderson Moreira, seu antecessor no cargo, reconhecidamente tinha uma boa relação com os jogadores do Ceará nos vestiários. Teve dificuldades para adquirir a confiança dos atletas?

Não. Foi muito tranquilo, a recepção foi muito boa, ambiente muito bom, com profissionais sérios, e estou muito contente com a entrega de todos, com um respeito muito grande.

O Bergson andava meio encostado quando você chegou. Já dá para dizer que é um atleta recuperado?

Sim, mas eu já o conhecia. Às vezes, em jogos anteriores, a questão era o posicionamento. Frequento muito campo do Athletico-PR e eu via o Bergson jogando lá. Aí, no momento oportuno, o coloquei. Recebi algumas vaias, mas tudo tem o seu momento, e ele é um jogador em quem confio.

Em termos nacionais, como você avalia que está a formação de novos atletas?

Acho difícil avaliar porque nunca trabalhei em categorias de base, sempre estive no profissional dos clubes. E esse intercâmbio a gente faz muito no pós-jogo, chamando para treinar. Acho que tem haver um número maior de competições para a gente cobrar deles. Hoje, tem uma quantidade até maior de jogos, mas eles têm que competir num nível melhor. Vejo que é melhor muitas vezes fazer um coletivo, nos pós-jogos, com atletas que não participaram das partidas. Eles podem crescer mais assim, tendo contato com os profissionais, do que jogando estaduais de suas categorias, por exemplo.

Qual é a grande dificuldade nesse quesito? Acha que os jogadores de hoje são mesmo "mimados", como tem se tornado senso comum atualmente?

Acho que é uma outra geração, com a qual a gente precisa se adaptar, e cabe a quem está no comando ditar as regras. É simples.

Dá para comparar com sua época?

Evidentemente que são outros tempos, temos que entender. É outra realidade, com outros números. Tem a questão da ambição, do sonho um pouquinho mais na frente. Muitos querem chegar lá sem cumprir como se deve todas as etapas, ou jogam pensando em outros interesses que não ajudar o clube onde está. Há mais empresários, mais ofertas, e isso influi bastante no processo. Temos que acompanhar isso.

Com inf, Estadão Conteúdo | Foto: Geraldo Bubniak

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