PL das Fake News: pesquisadores defendem órgão fiscalizador autônomo
- 05/05/2023
A falta de consenso sobre quem deverá fiscalizar as medidas
previstas no Projeto de Lei 2.630/2020, que institui regras regulatórias para o
funcionamento de plataformas digitais no Brasil, é considerada uma das razões
que vem travando o avanço na tramitação. A votação na Câmara dos Deputados
estava prevista para a última terça-feira (2), mas acabou retirada de pauta
pelo presidente da casa, Arthur Lira. Ainda não há data definida para que seja
apreciado pelo plenário.
O projeto, que se tornou conhecido com PL das Fake News,
chegou a contar, em suas primeiras versões, com trecho prevendo a criação de
autarquia especial destinada à fiscalização do cumprimento da lei. Diante de
divergências, o trecho acabou sendo retirado pelo relator, deputado Orlando
Silva (PCdoB-SP), que protocolou seu parecer na semana passada. Ele incluiu
artigo estabelecendo que a fiscalização se dará nos termos de regulamentação
própria. Se for aprovado nesses termos, a forma de fiscalização das medidas
deverá ser definida após a aprovação do PL.
Em debate online realizado quarta-feira (3), pesquisadores
de comunicação apontaram que essa é uma questão central. O encontro, que abriu
espaço para análises sobre a regulação das plataformas digitais, foi organizado
pela Rede Nacional de Combate à Desinformação e pela Associação Nacional de
Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós). "Não há como escapar
da discussão sobre o ente regulador", disse Murilo Cesar Ramos, professor
e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ele, um caminho é contar com uma agência reguladora,
a exemplo do que já ocorre em diversos setores. Ele cita a Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel),
Agência Nacional do Cinema (Ancine) e a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa). Cabe a elas instituir regulamentos, fiscalizar o
cumprimento de normas e de leis e fazer autuação em caso de descumprimento. O PL
das Fake News prevê que infrações podem gerar punições, com multas que vão de
R$ 50 mil a R$ 1 milhão por hora.
"Se estamos pedindo regulação, temos que nos perguntar:
quem vai regular? Precisamos de uma instância reguladora que seja
autônoma", defendeu. Embora veja problemas em algumas das agências
citadas, ele destacou o exemplo da Anvisa: seu diretor-presidente tem mandato
fixo e não pode ser demitido a qualquer momento. "A Anvisa se valeu de sua
autonomia funcional e da qualidade de seu corpo técnico de Estado para
enquadrar até o presidente da República durante a pandemia de covid-19",
afirmou.
Alguns parlamentares já defenderam que a fiscalização das
medidas previstas no PL das Fake News fique a cargo da Anatel. Segundo Murilo
Ramos, essa é uma alternativa. "Se o PL for aprovado, isso vai existir. Ou
pode ser algo que já exista, por exemplo, a Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD), a Anatel, ou uma junção das duas. Fato é que vai existir. Porque
se não existir um ente regulador será o pior dos mundos. A regulação passa a
ser exercida pelo Poder Executivo diretamente ou pelo Poder Judiciário. E isso
é um risco".
Murilo também manifesta receio com as propostas de um ente regulador que tenha internamente representação das plataformas digitais. "Como que você vai ter uma agência de Estado tendo as empresas que você regula dentro dela?", questiona. Helena Martins, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC), defende a criação de um órgão novo, com mecanismos que assegurem a participação social e impeçam sua captura pelo setor privado.
"A Anatel é a expressão da captura pelo setor. Todas as
decisões da Anatel em momentos polêmicos são favoráveis às empresas de
telecomunicações. Isso aconteceu, por exemplo, em discussões sobre regime
público e privado, a neutralidade da rede, sobre radiodifusão comunitária. É
possível transformar a Anatel em outra coisa? É possível. Mas colocar a Anatel
como ela é hoje nesse lugar é entregar a regulação das plataformas para um
setor que tem outros interesses. Vão prevalecer os interesses das empresas de
telecomunicação em questões centrais. Seria um equívoco".
Medidas previstas no PL
As medidas previstas no PL afetam provedores de redes
sociais, sites de busca e ferramentas para envio de mensagens instantâneas. As
regras não valem para plataformas que tenham média mensal inferior a 10 milhões
de usuários. Também não atingem aquelas voltadas para comércio eletrônico,
jogos e apostas online, reuniões fechadas em vídeo ou voz e para repositório
científico ou educativo.
Em caso de aprovação, mudanças que estão previstas serão
notadas na experiência do usuário. Eles deverão, por exemplo, ter condições de
configurar como querem receber os conteúdos recomendados, os quais precisarão
ser facilmente identificados. Além disso, a reprodução automática de sons ou
vídeos só pode ocorrer mediante consentimento. As únicas exceções são músicas
ou conteúdo de listas criadas pelo próprio usuário.
As empresas deverão ter representação no Brasil. São
previstas também medidas que limitam a disseminação de mensagens em massa e o
compartilhamento de dados pessoais de usuários. Ainda conforme o texto em
discussão, as plataformas digitais deverão fornecer uma série de informações
nos seus termos de uso, tais como os tipos de conteúdos proibidos, a faixa
etária à qual se destinam, os meios para denúncia de possíveis violações, critérios
usados na moderação das contas, parâmetros usados para recomendar ou direcionar
conteúdos, descrição geral dos algoritmos utilizados e regras envolvendo a
publicidade.
O projeto também amplia casos em que as plataformas são
responsáveis pelos conteúdos postados pelos usuários. Até então, só podem ser
punidas caso descumpram ordem judicial para remoção de alguma publicação. Se o
PL for aprovado, elas se tornarão responsáveis solidárias pelos conteúdos cuja
distribuição tenha sido impulsionada por meio de publicidade da plataforma.
Além disso, em situações específicas nas quais forem identificados riscos
iminentes de danos, precisarão adotar medidas previstas em um protocolo de
segurança. Do contrário, poderão ser responsabilizadas pelos conteúdos que forem
publicados.
Murilo Ramos considera que o termo PL das Fake News distorce
o real conteúdo do projeto. "É um projeto que dispõe sobre liberdade,
responsabilidade e transparência na internet", diz. O PL, que tramita
desde 2020, teve sua urgência aprovada no início da semana passada, o que
permite que agora ele seja votado pelo plenário sem passar pelas comissões. A
situação gerou uma ofensiva das plataformas, que chegaram a ser acusadas pelo
governo e por entidades da sociedade civil de impulsionar suas próprias
posições contrárias ao projeto e censurar conteúdos favoráveis.
Debate público
Segundo Helena Martins, essa tentativa de direcionar o
debate público ocorre porque medidas previstas no PL afetam economicamente as
plataformas. Ela cita as regras envolvendo transparência sobre os algoritmos,
sobre os sistemas de recomendação e o poder de escolha do usuário de não ser
bombardeado com conteúdos direcionados especificamente a ele. "É um modelo
de negócio que não é defensável à luz do dia. É baseado em disputa de atenção,
em captura de atenção, para converter os usuários em audiência para a
publicidade. Não há nenhum compromisso com o interesse público", diz ela.
A pesquisadora aponta que diversos estudos já mostraram como
as plataformas têm proporcionado circulação de conteúdo extremista. Ela
reconhece que um dos riscos de um novo marco regulatório é dar às plataformas o
poder de decidir o que é ou não é crime. Havia uma preocupação de que ao
responsabilizá-las pelo conteúdo dos seus usuários, elas teriam maior autonomia
para censurá-los. Helena acredita que o texto do relator encontrou um caminho
do meio. "Elas serão chamadas a atuar em alguns cenários considerados mais
problemáticos como é o caso dos ataques violentos às escolas", avalia.
De acordo com a pesquisadora, a discussão em torno da
regulação das plataformas é complexa porque vários interesses privados
impediram um debate democrático sobre a comunicação social no Brasil desde a
década de 90, tentando associar regulação com censura. As expectativas em torno
da tecnologia também afetaram o debate público.
"Muitos acreditavam que a tecnologia fosse resolver
problemas que são eminentemente sociais. E isso fez com que a internet fosse
vista como um espaço não regulado: porque é transnacional, porque impediria a
inovação. Mas o fato é que não haver regulação pública e democrática também é
uma forma de regulação, porque essas atribuições são assumidas pelo setor
privado". Ela diz ainda que muitas propostas no PL das Fake News foram
inspiradas em medidas que estão sendo adotadas na Europa, mas que o debate
também está atravessado pelo contexto geopolítico e pelas assimetrias globais,
o que faz com que as plataformas se mostrem mais resistentes a aceitar mudanças
em países em desenvolvimento.
Helena observa que as tradicionais empresas de radiodifusão
do Brasil são responsáveis pela dificuldade de se falar em regulação da
comunicação e de órgão regulador, já que sempre fizeram lobby para travar essas
propostas, classificando-as como censura. Nesse sentido, a pesquisadora aponta
a postura contraditória representada pela Associação Brasileira de Emissoras de
Rádio e Televisão (Abert), essas empresas apoiam o PL das Fake News. Elas podem
ser beneficiadas economicamente pelo projeto, pois um dos artigos prevê que as
plataformas devem remunerar veículos midiáticos que produzem conteúdos
jornalísticos e que tem notícias e reportagens compartilhadas nas redes
sociais.
Para a pesquisadora, seria melhor tratar dessa questão em
outro momento, para que pudesse ser feita uma discussão ampliada, incluindo
produtores de conteúdo e portais menores que também teriam direito à
remuneração. Ainda assim, ela discorda de quem se opõe ao PL por causa desse
artigo. "Transformar isso no ponto principal do projeto e falar que é um
projeto da Globo e das empresas de radiodifusão é reduzir muito a análise. É um
texto mediado, que tem vários interesses colocados. Mas, para mim, esse ponto
está longe de ser o principal do projeto".
Com Inf: EBC | Foto: Pedro França/Agência Senado
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