O frigorífico que produz carne de frango sem matar nenhuma ave
- 17/10/2018
Há uma crise iminente diante do
crescente apetite por carne no mundo. Será que um frango que cisca em uma
fazenda em São Francisco pode ser a solução?
Em 1931, Winston Churchill previu
que um dia a raça humana "escaparia do absurdo de criar uma galinha
inteira para comer o peito ou a asa, produzindo essas partes
separadamente"
Oitenta e sete anos depois, esse
dia chegou, como descobrimos na Just, empresa de alimentos em São Francisco,
nos EUA, onde provamos nuggets de frango fabricados a partir das células de uma
pena de galinha.
O frango - que tinha gosto de
frango - ainda estava vivo, supostamente ciscando em uma fazenda não muito
longe do laboratório.
Essa carne não deve ser
confundida com os hambúrgueres vegetarianos à base de verduras e legumes e
outros produtos substitutos de carne que estão ganhando popularidade nos
supermercados.
Não, trata-se de carne real fabricada
a partir de células animais. Elas são chamadas de diversas formas: carne
sintética, in vitro, cultivada em laboratório ou até mesmo "limpa".
São necessários cerca de dois
dias para produzir um nugget de frango em um pequeno biorreator, usando uma proteína
para estimular as células a se multiplicarem, algum tipo de suporte para dar
estrutura ao produto e um meio de cultura - ou desenvolvimento - para alimentar
a carne conforme ela se desenvolve.
O resultado ainda não está
disponível comercialmente em nenhum lugar do planeta, mas o
presidente-executivo da Just, Josh Tetrick, diz que estará no cardápio em
alguns restaurantes até o fim deste ano.
"Nós fazemos coisas como
ovos, sorvete ou manteiga de plantas e fazemos carne apenas a partir de carne.
Você simplesmente não precisa matar o animal", explica Tetrick.
Nós provamos e os resultados
foram impressionantes. A pele era crocante e a carne, saborosa, embora a
textura interna fosse um pouco mais macia do que a de um nugget do McDonald's
ou do KFC, por exemplo.
Tetrick e outros empresários que
trabalham com "carne celular" dizem que querem impedir o abate de
animais e proteger o meio ambiente da degradação da pecuária intensiva
industrial.
Eles afirmam estar resolvendo o
problema de como alimentar a crescente população sem destruir o planeta,
ressaltando que sua carne não é geneticamente modificada e não requer
antibióticos para crescer.
A Organização das Nações Unidas
(ONU) diz que a criação de animais para a alimentação humana é uma das
principais causas do aquecimento global e da poluição do ar e da água. Mesmo
que a indústria pecuária convencional se esforce para se tornar mais eficiente
e sustentável, muitos duvidam que será capaz de acompanhar o crescente apetite
global por proteína.
Abatemos 70 bilhões de animais
por ano para alimentar sete bilhões de pessoas, destaca Uma Valeti,
cardiologista que fundou a Memphis Meats, empresa de carnes fabricadas a partir
de células, na Califórnia.
Segundo ele, a demanda global por
carne está dobrando, à medida que mais pessoas saem da pobreza. Nesse ritmo,
acrescenta, a humanidade não conseguirá criar gado e frango suficientes para
saciar o apetite de nove bilhões de pessoas até 2050.
"Assim, podemos literalmente
cultivar carne vermelha, aves ou frutos do mar diretamente dessas células
animais", diz Valeti.
Muitos americanos afirmam que estão comendo menos carne, mas dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos sugerem que o consumidor médio ainda vai ingerir mais de 100 quilos de carne vermelha e frango neste ano - cerca de 20 quilos a mais do que consumiam nos anos 1970.
O cientista holandês Mark Post é
um dos pioneiros da agricultura celular - seu primeiro hambúrguer produzido em
laboratório, em 2013, custou US$ 300 mil.
Nenhuma empresa ampliou ainda a
produção para servir comercialmente um hambúrguer feito a partir de células,
mas Post estima que, se começasse a produzir seus hambúrgueres em massa,
poderia reduzir o custo de produção para cerca de US$ 10 cada.
"É claro que ainda é muito
alto", avalia.
Se a Just conseguir fabricar
nuggets de frango suficientes para vender neste ano, é improvável que seja em
um restaurante americano, pois o governo dos EUA ainda está decidindo como
proceder.
A maioria dos alimentos no país é
regulada pela Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em
inglês). Mas alguns - principalmente a carne produzida convencionalmente - são
controlados pelo Departamento de Agricultura (USDA, na sigla em inglês).
Então, se você compra uma pizza
congelada nos EUA, o USDA é responsável pela de pepperoni e o FDA, pela de
queijo.
"Há vários países na Ásia e
na Europa com os quais estamos conversando", diz Tetrick.
Segundo ele, "há uma falta
de clareza" em relação à regulamentação nos EUA, enquanto o USDA e o FDA
realizam audiências públicas sobre o tema.
"Acho que os países querem
assumir essa liderança. Seja pela escassez de alimentos, por questões de
sustentabilidade ou apenas pelo desejo de construir uma economia inteiramente
nova, eles querem assumir essa liderança", disse Tetrick.
O objetivo final é levar a
"carne celular" do laboratório para grandes fábricas.
Existem atualmente dezenas de
empresas que atuam nessa área e estão atraindo investidores de capital de risco
do Vale do Silício e de outras regiões. Bilionários como Bill Gates e Richard
Branson estão entre aqueles que investiram dinheiro na tecnologia.
O produto também conta com um
benfeitor mais surpreendente: a Tyson Foods, que investiu uma quantia não
revelada na Memphis Meats.
A Tyson é a maior processadora de
carnes dos EUA - são cerca de 424 mil suínos, 130 mil vacas e 35 milhões de
frangos processados por semana.
Então, por que a companhia
estaria investindo em "carne celular"?
Ela decidiu "deixar de ser
uma empresa de carne para ser uma empresa de proteína", diz Tom
Mastrobuoni, diretor financeiro da Tyson Ventures, braço de capital de risco da
Tyson.
"Tomamos a decisão
consciente de que seremos a maior empresa de proteínas", acrescentou.
A tecnologia de ponta do Vale do
Silício pode ser sinônimo de um espírito liberal e empreendedor, mas os EUA
ainda são um país onde a tradição fala alto.
A Associação dos Pecuaristas tem
um lobby forte e não há nenhum símbolo mais venerado ou romantizado na história
do país do que a figura do caubói.
E, assim, os fazendeiros do
Meio-Oeste estão entrando no debate sobre como este novo produto será
comercializado - como carne limpa, carne celular, carne livre de abate, proteína
ética ou apenas carne?
Em seu rancho em Ozarks, região
montanhosa que se estende do Missouri ao Arkansas, Kalena e Billy Bruce
alimentam seu rebanho de gado Black Angus, com a ajuda da filha de quatro anos,
Willa.
"Acho que precisa ser
rotulado propriamente - como proteína produzida em laboratório", opina
Billy Bruce.
"Quando penso em carne,
penso no que está atrás de nós, um animal vivo que respira."
O estado do Missouri concorda. A
pedido dos agricultores, os legisladores determinaram que o rótulo de carne só
pode ser aplicado ao produto do gado. É um indicio de que o rompimento com a
agricultura tradicional pode estar a caminho.
"Do ponto de vista da
transparência para os consumidores, para que saibam o que estão comprando e
dando para suas famílias comerem, achamos que precisa ser chamado de algo
diferente", diz Kalena Bruce.
Lia Biondo, diretora de políticas
de expansão da associação de pecuaristas dos EUA, com sede em Washington, diz
que espera que a lei do Missouri possa ser reproduzida em outros Estados.
"Vamos deixar que essas
empresas decidam como chamar seus produtos, desde que não chamem de carne",
diz Biondo.
Mas, em todo caso, será que
alguém vai realmente comer esses produtos?
Frequentadores do Lamberts,
restaurante tradicional do Meio-Oeste em Ozark, no Missouri, terão que ser
convencidos.
"A carne deve ser criada em
uma fazenda, nos campos", declara Jerry Kimrey, trabalhador da construção
civil de Lebanon, no Missouri.
A professora Ashley Pospisil,
também de Lebanon, diz que prefere não comer carne à base de células.
"Eu gosto de saber de onde a
carne veio, que é natural e não foi processada em laboratório", diz ela.
Linda Hilburn, que está comendo
um bife antes de ir para casa em Guthrie, em Oklahoma, concorda:
"Tem algo na criação do
homem que me assusta. Só causamos destruição aqui. Eu meio que gosto da ideia
da criação de Deus."
Enquanto Hilburn está longe de
ser a única a ter um pé atrás com a "comida Frankenstein", como os
críticos a rotularam, Josh Tetrick insiste que a carne feita a partir de
células é totalmente livre das muitas doenças animais que afetam a produção
tradicional de carne.
E ele está apostando na experiência
humana a favor do progresso.
"No fim das contas, se você
está falando do avanço do picador de gelo para a geladeira ou da matança de baleias
para usar seu óleo em lamparinas até as lâmpadas incandescentes... mesmo que as
pessoas associassem as lâmpadas ao diabo... a humanidade conseguiu abraçar algo
novo."
"Isso sempre acontece e, se
eu tivesse que apostar, é o que vai acontecer em relação a isso também."
G1
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